ACEITAÇÃO DE REGRAS SOCIAIS: UM PACTO CIRCUNSTANCIAL
REGIDO PELA
CONVENIÊNCIA PESSOAL E NÃO GRUPAL
(Breve Ensaio Analítico a partir do Projeto
Rede Belém Contra a Covid 19)
Por Carlos Correia Santos*
CONTEXTUALIZAÇÃO
O Surgimento do Projeto Rede Belém
Em março de 2020, quando eclodia a pandemia do coronavírus no mundo, tive a ideia de criar um grupo de Whatsapp que pudesse servir de rede de apoio ao combate à Covid 19. Foi um propósito completamente intempestivo, um estalo, um ato sem amarra de intentos que não fosse exatamente unir pessoas muito assustadas - eu, uma delas - para trocar contatos, protocolos de segurança, informações confiáveis com intuito de nos manter a salvo da doença o máximo possível. Batizei o grupo de Rede Belém Contra a Covid 19.
O que tinha sido uma iniciativa de segundos, rápido se tornou algo de proporções grandes. No mesmo dia em que foi criado, o grupo ganhou bastante lotação. Em cinco dias, já eram mais de 150 pessoas tensas, ansiosas, fragilizadas. Ao cabo de um curto espaço de tempo, o empreendimento se espraiou e criei grupos de redes de apoio para outras cidades. Todavia, para os fins da análise que pretendo aqui apresentar, vou me centrar nesse ensaio nas circunstâncias do grupo de Belém.
Logo
de imediato, ponderei que aquele espaço não poderia ser uma zona livre de
regulações. Eu mesmo nunca me senti confortável em grupos sem normas claras ,
fixas e de fato aplicáveis. Assim, estabeleci um conjunto bastante coercitivo
de regras. Minha meta inicial era, naquele ambiente de imenso pavor sanitário e
intensa polarização político-religiosa, garantir, a todo custo, um cenário de
bem estar mental para os participantes, sem ruídos, sem informações falsas ou
duvidosas, sem nada que pudesse causar mais dor do que já estávamos sentindo. Todos
que entravam recebiam a mensagem abaixo:
Aos que entraram recentemente, sejam bem vindos. Sou o Administrador do grupo. Meu nome é Carlos Correia Santos. Sou artista (escritor e músico), Psicopedagogo e Musicoterapeuta, especialista em Inclusão e Autismo. Também Psicanalista em formação. MAS, ACIMA DE TUDO, CIDADÃO! Eu faço o que posso para que sobrevivamos à tragédia do coronavírus!
Criei esse grupo com intuito de nos fortalecer nesse momento delicado de pandemia. A ideia é formar uma Rede de Apoio para troca de contatos de médicos e/ou terapeutas que atendam online ou em domicílio, locais onde estão sendo vendidos medicamentos prescritos (com receita), protocolos de ação em casos de suspeita ou confirmação da COVID, contatos de locais de exames, locais de tratamento e internação, mapa de hospitais e UPAS abertos, contatos de empresas que entregam em domicílio (farmácias, supermercados, fruteiras, padarias), dados sobre a pandemia, videoaulas que possam ser realizadas em casa. Medidas que tornem esse período positivo e resolutivo. Juntos somos mais fortes!
REGRAS DO GRUPO
Posts
permitidos:
# Trocas de contatos
de empresas que façam delivery
# Direcionamentos em
casos de suspeita de COVID 19
# Locais de
atendimento médico
# Videos sobre
procedimentos de segurança
# Vídeos que ensinem
técnicas, confecção de material ou praticas salutares
# Trocas de relatos
sobre amigos/parentes com suspeitas de COVID 19
# Notícias reais e
checadas sobre a pandemia, em especial sobre a situação de Belém
# Prestação de
serviços que atendam o quadro da pandemia
Posts
proibidos
# Prescrições
medicamentosas (indicações de medicamentos diretas ou indiretas)
# Supostas pesquisas a
respeito do coronavírus sem respaldos reais
# Opiniões políticas
#Opiniões religiosas
# Fake News
# Notícias sobre a
pandemia que causem sofrimento
# Divulgação de notas
de óbito
# Divulgações que
fujam da prestação de serviço dentro do quadro de pandemia
# Memes, GIFs,
Stickers, correntes, saudações ilustradas
Claro ficava de imediato, portanto, que aquele não era um espaço de total livre expressão. Havia norteadores. Havia o que podia e o que não podia. A permanência ali, lógico, não era compulsória. Nem jamais poderia ser. Ficava quem queria. Quem precisava. E quem queria e precisava automaticamente aceitava as regras.
Não demorou para que eu começasse a perceber paralelamente, naquele grupo, uma potencialidade bastante pertinente às minhas áreas de atuação e pesquisa: aquele espaço, para além de seu propósito geral, para mim, podia ser também um interessante locus de análise comportamental em meio a uma seríssima pandemia. Desta sorte, comuniquei ao grupo diversas vezes que ele era também, para o meu olhar, um espaço de pesquisa. Não houve oposições. Ou seja, quem lá estava sabia desse meu ângulo de apreciação e gestão.
A Fase 01 do Grupo - Plena Harmonia
Então, passei a exercitar uma administração propositadamente coercitiva e sem espaço para debate quanto às regras. A minha meta de pesquisa era: até quando as pessoas agüentariam seguir firmemente regras irredutíveis? Era, pois, EXIGÍVEL seguir as regras impostas. Quem não as seguisse seria sumariamente excluído. No que mais residia meu interesse investigativo? Eu busquei fazer daquele grupo um microcosmos do que se passava no mundo real. Para além do nosso espaço online, vivíamos uma grande dicotomia. O pavor contra o coronavirus determinava que os governos estaduais impusessem o chamado lockdown. Nossos direitos de ir e vir estavam cerceados. Inicialmente, afetada pelo temor, a sociedade aceitou essa restrição. Mas rapidamente as insurgências sociais começaram a eclodir. Explodiram Brasil afora os casos de insatisfações com as restrições, com as normas, com as regras, as aglomerações foram voltando. Um clima de dualidade se instalava: havia o medo, havia a necessidade de se tolher em nome das saúde pública, mas havia a natureza humana contemporânea sedenta por fazer o que quer e o que lhe dá prazer. Dentro do Rede Belém, no entanto, o lockdown seria irredutível. Até onde iríamos? Como as coisas fluiriam?
O mês de abril de 2020 foi o mais dramático. Explodiam os casos de adoecimento na Belém externa, com hospitais lotados sem espaço para recebimento de acometidos, com medicamentos sumindo das farmácias por completo, com mortes diárias de amigos, parentes, conhecidos. O grupo se fortaleceu gigantemente nesse terreno de terror extremo. Viramos uma corrente coesa de carinho, afeto, atenção mútua. O meu tom como administrador era implacável. As regras TINHAM que ser obedecidas. Não era tolerado erro quanto a isso. Fake News eram sumariamente proibidas (elas causavam perigosa confusão no senso crítico). Notas de falecimento eram sumariamente proibidas (abalavam a psique de quem já estava em frangalhos com tudo aquilo). Sugestões de medicação estavam barradas (não havia comprovações científicas que sustentassem essas prescrições). Não havia contestações quanto a esses ditames. As regras eram fielmente aceitas sem nenhumas contestações.
A
lotação do grupo explodiu. As listas que organizávamos (com contatos de
delivery, médicos, farmácia) viralizaram na cidade, espalharam-se por vários
outros grupos. Fazíamos plantão para indicar onde havia atendimento médico de
urgência em qualquer hora do dia ou da noite. Varei madrugadas orientando
pessoas desesperadas. Apliquei técnicas de hipnose para ajudar em quadros
intensos de ansiedade. No próprio grupo e nos privados de quem demandava.
Muitos que estavam no grupo acabaram adoecendo e prestávamos auxílio dos mais
variados e amorosos. Estabeleci um critério - que não chegava a ser uma das
regras estatuídas - para atendimento de pedidos de socorro: quando alguém
solicitava ajuda em caráter de emergência, todas as conversas paralelas TINHAM
que parar a fim de que todos se focassem naquela ajuda urgente. Funcionava
imensamente. Acompanhamos casos dramáticos. Não conseguimos ser bem sucedidos
em todos. Vimos mortes de pessoas próximas ao grupo acontecer.
As regras seguiam implacáveis. Meu tom seguia severo e irredutível. A despeito disso, o clima no grupo era coeso, gentil, cordato, amistoso. Inclusive com promessas sobre o futuro: "vamos, todos juntos, fazer uma grande festa quando tudo isso passar"
A Fase 02 do Grupo - As Insatisfações Pessoais
Passado abril, passado maio... o mês de junho chegou no mundo externo com uma aparente nuance de melhora. As explosões de casos aparentemente recrudesceram. Já não havia hiper lotação nos hospitais. As medicações já eram mais facilmente encontradas. E, sobretudo, era grande o número de pessoas que supostamente estavam recuperadas da Covid 19. Começava uma forte mudança de postura social no mundo offline, na vida real. O lockdown, o isolamento e a quarentena passaram a ser tácita e concretamente contestados no cotidiano externo. A pressão do mercado era grande. Chegou o dia dos namorados e as aglomerações eclodiram nos shoppings.
Não coincidentemente, nesse mesmo momento em que o temor começa a se diluir (mesmo que ainda sem ancoradouros científicos para isso), começa a mudar o clima do grupo. As regras começam a ser contestadas. Nesse momento, tanto no grupo em si como no meu privado, recebi ao longo de uma semana inúmeras reclamações sobre as regras. Da noite para o dia, passaram a ser consideradas duras demais, implacáveis demais. Por que não se podia postar essa ou aquela notícia, ainda que ela tivesse claramente um teor de comprovação frágil? Decido então, afrouxar as regras, mas jamais deixar de estabelecer normas. Assim, surge a Fase 02 das normativas do grupo:
REGRAS
ATUAIS DO GRUPO
(modelo grupo de convivência)
Posts
prioritários:
# Trocas de contatos de empresas que
façam delivery e de profissionais que façam atendimentos médicos e terapêuticos
(incluindo as terapias alternativas)
# Direcionamentos em casos de
suspeita de COVID 19
# Locais de atendimento médico
# Videos sobre procedimentos de
segurança
# Vídeos que ensinem técnicas,
confecção de material ou praticas salutares
# Trocas de relatos sobre
amigos/parentes com suspeitas ou confirmação de COVID 19
# Notícias reais e checadas sobre a
pandemia (locais, regionais e internacionais), em especial sobre a situação de
Belém
# Prestação de serviços que atendam
o quadro da pandemia
Posts
que passam a ser permitidos
#Divulgações gerais de interesse sociocultural
(desde que não sejam excessivos)
# Indicação de materiais e/ou
produtos para entretenimento e/ou relaxamento (desde que não sejam excessivos)
# Memes, GIFs, Stickers, correntes,
saudações ilustradas (desde que não sejam excessivos)
Posts
que continuam proibidos
# Prescrições medicamentosas
(indicações de medicamentos diretas ou indiretas)
# Supostas pesquisas a respeito do
coronavirus sem respaldos reais e consenso científico
# Notícias em geral (sobre a
pandemia e outros assuntos) que causem sofrimento
# Opiniões políticas
#Opiniões religiosas
# Fake News
OBS 01: Permanece a regra: em caso de material com potencial teor polêmico, antes enviar para o PV do administrador do grupo
OBS
02: Caso tenhamos nova explosão de emergências na cidade,
as regras anteriores voltam a ser aplicadas
Desse momento para frente, a coesão, a harmonia e o clima de respeito ao padrão de regras se perde no grupo. Na mesma medida em que no mundo externo as práticas sociais vão se tornando mais permissivas, no grupo vão se tornando cada vez mais sucessivas as contestações, as insurgências, os desrespeitos ao pactuado. Mensagens com teor apontado como interditado começam a ser sucessivamente postadas (o que não aconteceu de forma alguma quando o status do medo pessoal era pleno).
Meu comando não se altera. Estrategicamente, sigo mantendo meu tom inabalável, austero. E quanto mais diminui o clima de medo do adoecimento no externo, mais se desfaz o acordo interno de respeito pleno ao conjunto de regras anteriormente aceito. Mais eclodem os desejos pessoais de contestar, de não se submeter, de não seguir o que se aceitou como melhor para o coletivo, de não pensar no todo, mas na opinião particular de que essa ou aquela norma incomoda. É preciso frisar que muitas vozes se levantaram no grupo solicitando que se mantivesse o respeito às regras, lembrando que elas sempre foram aceitas por todos. Ainda assim, germinam mais e mais as manifestações particulares contrárias ao acordo grupal. Muitos começam a sair do grupo. Alguns alegando mudança de foco. Entrementes, houve de fato mudança de foco? O propósito do grupo se mantinha. As regras foram suavizadas, mas tinham o mesmo eixo do início de tudo. O grupo mudou de foco? Ou era o foco pessoal que estava mudando na medida em que o receio do terror pandêmico arrefecia?
A Fase 03 - A Desagregação
Na ausência de situações emergenciais a serem dirimidas, as discussões sobre a pertinência das regras do grupo começaram a se tornar frequentes, quase protagonistas. Em meados de julho de 2020 discussões grandes sobre essa questão me levaram a fazer um movimento cabal: decidi abandonar o projeto. Ia parar com a gestão do grupo e mesmo com essa pesquisa que ora relato.
É válido considerar que eu vinha gerindo tudo aquilo (na fase harmônica e desagregada), precisando lidar também com os meus demônios pessoais. Tinha, naquilo tudo, os meus pavores sobre toda aquela pandemia. Eu passei meses preso em casa em absoluto isolamento por conta da minha mãe, com quem convivo. Minha mente estava tão fragilizada quanto qualquer outra. Minha saída causou grande fissura no grupo. Foram muitos os pedidos para que eu retornasse. Então, esforcei-me para colocar meus trilhos no prumo e retornei a gestão do empreendimento, reconfigurando-o mais um pouco. As regras da segunda fase continuavam, mas propositadamente me tornei menos coercitivo.
A ausência do tom mais focal nas regras abriu espaço para que as contestações de novo voltassem e cada vez mais fortes. No paralelo que venho fazendo questão de traçar, no mundo externo era igualmente cada vez maior o desinteresse dos cidadãos por seguir protocolos de segurança.
Mensagens sem contexto seguro voltaram a ser sucessivamente postadas no grupo. Meu tom forte de interdição tornou a se levantar como era feito desde o início. As brigas por insatisfação quanto ao cumprimento das regras se agudizaram.
Por fim, no dia 12 de agosto de 2020, entendi que estava concluído o projeto Rede Belém Contra a Covid 19. Já não havia mais pertinência em se ofertar uma rede apoio virtual, o nível de dispersão grupal já havia se tornado imenso e eu já havia conseguido reunir argumentos de análise suficientes. E os mesmos foram aqui expostos nessa sistemática textual que, abaixo, concluo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os cinco meses de duração do projeto virtual Rede Belém Contra a Covid 19, mesmo não sendo uma investigação científica com todos os elementos formais exigidos, fazem com que eu chegue a algumas conclusões. Todas teorias pragmáticas abalizadas por uma análise qualitativa dos fatos.
A primeira delas é que um substrato virtual pode, sim, reproduzir contextos do mundo externo em circunstâncias de similaridade capazes de ofertar impressões seguras sobre fenômenos sociais. O microcosmos do grupo de Whatsapp do qual participávamos reconstituía, mesmo que não nos fosse claro de imediato, as práticas comunitárias que concomitantemente aconteciam na vida real. Íamos reproduzindo ali o que era vivenciado nas ruas das cidades, nas casas, nos meios públicos gerais.
A outra conclusão a que chego é que o afrouxamento de regras vicia o respeito pleno às mesmas. E isso aconteceu no supra mencionado projeto. Na medida em que as normas foram sendo suavizadas, mais foi aumentando o desinteresse por seguir cumprindo o que foi estabelecido e aceito inicialmente.
Por fim, outro importante apontamento conclusivo aferido - em realidade, o mais instigante para o meu olhar de pesquisador comportamental - é que o medo do colapso pessoal influi nos comportamentos em grupo, criando uma praxe atitudinal bastante pontual. Ou seja, o ser social se permite se tolher uma vez que se sinta ameaçado em suas particularidades vitais. Enquanto havia o medo de uma pandemia desconhecida (o medo do adoecimento, o medo da morte), em momento algum se contestava um sistema de regras, por mais rígido e implacável que ele se apresentasse. A partir do momento que esse temor vai se diluindo (ainda que sem uma garantia científica consistente, como uma vacina), o interesse pela coparticipação na manutenção de uma segurança grupal vai deixando de existir. O que passa a prevalecer e ter mais importância é a convicção pessoal, é a necessidade particular de se impor mesmo que seja em detrimento do que está estatuído para proteger e trazer paz para um grupo maior que o eu. Ou seja, a aceitação de regras é um pacto circunstancial regido pela conveniência pessoal e não grupal.
Outrossim, esse trabalho que ora apresento tem algum valor real? É uma visão incontestável dos acontecimentos narrados? Evidente que as duas respostas serão não. No entanto, ofereço essa minha visão analítica como uma humilde contribuição para um possível entendimento de comportamentos em situações comunitárias críticas, como a pandemia da Covid 19. Uma contribuição que, sendo aceita ou contestada, possa servir para estabelecer debates que nos levem a práxis sociais mais oportunas no futuro.
*Carlos Correia Santos é Psicopedagogo (ABPP/PA
2020006), Musicoterapeuta (CPMT-PA
036/19)e Ludoterapeuta, com capacitação em Arteterapia, Terapia Cognitivo
Comportamental, Terapia Neurocientífica e TDAH (Avaliação e Intervenção),
especialista em Educação Inclusiva, especialista em Autismo, especialista em
Saúde Mental e especialista em Educação Musical e Ensino de Artes. Psicanalista
em formação e pós-graduando em Transtornos Globais do Desenvolvimento e em
Neuropsicologia.
Muito bom. Obrigada por ter possibilitado a mim esta vivência. Aprendi muito.
ResponderExcluirApesar de participar pouco no grupo, sempre lia as postagens e foi muito importante para mim, uma verdadeira Rede de Apoio nesse momentos difícil que atravessamos no mundo inteiro. Sou imensamente grata a ti pela iniciativa e entende a sua decisão em encerrar o grupo!
ResponderExcluirVocê é uma pessoa iluminada e sempre acompanho suas postagens e oro por ti e pela tua Mãezinha! 💐🥰