PSICANÁLISE E O EUCENTRISMO PSÍQUICO: NÃO É TEMPO DE SE PENSAR EM CONSTRUIR O NÓS?

Por Carlos Correia Santos

 

Um das discussões mais basilares, caras e apaixonantes para a Psicanálise é o processo de construção do Eu. Quase todo o panteão de deuses dessa  prática psicoclínica fascinante vai se debruçar sobre esse terreno, ofertando possibilidades elucidativas das mais instigantes. O parto desse debate vem, claro, do pai de tudo.  Freud, calcado nos seus geniais conceitos topográfico e estrutural vai nos ensinar sobre consciente, pré-consciente, inconsciente, id, ego e superego. Por meio desse manancial, aprendemos que o Eu nasce justamente da cisão entre o consciente e o inconsciente, numa batalha identitária norteada pelas pressões das pulsões e moldada pelas opressões dos padrões sociais. O Eu é a porção do ser que consegue se configurar a partir desse conflito todo.

Vem, então, Lacan, com toda sua mística lingüística, falar sobre o outro e o Outro (sim, a diferenciação é ilustrada mesmo por essa questão morfológica das letras minúscula e maiúscula). O outro seria essa instância da pessoa, do indivíduo que está em oposição próxima na relação com o ser. O Outro é essa instância macrossocial com imposições éticas, morais. Na entrecruza desses entes, constitui-se o Eu.  

Outro nome importante no Olimpo da Psicanálise, em especial para o assentamento de bases para a psicoterapia infantil, Melanie Klein vem a postular sobre a importância da cisão relacional como pressuposto para a consolidação de um Eu mais saudável. Klein se convenceu e ofertou como suas preleções teóricas o entendimento de que o estado simbiótico seria normal, mas o bom desenvolvimento do vínculo mãe-bebê só seria de fato possível a partir da gradual separação desse elo inicial. Ou seja, é pela individualização do ser que o Eu se fortalece.

Winnicott, ao seu tempo, emerge para falar sobre a importância do Eu estar na solidão. Segundo o autor, o estar só é um dos maiores sinais de desenvolvimento emocional.

Assim, ecoa e ecoa e ecoa nas investigações e práxis psicanalíticas essa aposta no incremento do Eu, na sua solidificação, desenvolvimento, fortalecimento... Um Eu que consiga ser autorresoluto, psicoindependente.  

Só que talvez haja um grande entretanto a se trazer. E um regulador primaz para esse entretanto é a circunstância sócio temporal que hoje se vive. Uma circunstância que não foi experimentada por nenhum desses gigantescos autores acima. O tempo midiático atual tem sabidamente exacerbado a solidão do Eu. A tecnologia tem atuado fortemente para apartar os Eus. E essa exacerbação tem mostrado que o ser e o estar só podem também ser circunstâncias de e para o extremo adoecimento psíquico.

Evidentemente admitida a crucial relevância de todas as cabais investigações psicanalíticas sobre a consolidação do Eu, empreendidas pelos grandes mestres do ontem, é possível que se tenha chegado paradoxalmente a um status de Eucentrismo Psíquico com um perigoso devir.

Nesse momento humano hoje vivido, em que se constrói Eus excessivos (mercadológicos, fictícios, estético-determinados), em que viram ferramentas de marketing palavras como empoderamento e verbos como Seja, Faça, Conquiste, em que a imagem de si - sempre maquiada de uma patológica felicidade superiorizante -... Nesse atual momento sócio-histórico... até que ponto é salutar somente postular psicoterapicamente pela supremacia emocional do Eu? 

A endemia de depressão que toma  conta do mundo nas mais recentes décadas não seria também expressão de uma queda por demais profunda no Eucentrismo Psíquico? Não conseguir se resolver por si próprio se tornou sinônimo de fracasso. 

Óbvio está que conseguir lidar com o Si Mesmo é recurso que oportuniza manejo para contornar-superar frustrações, fobias, traumas. O objetivo desse presente texto jamais seria o de por isso em dúvida. Até porque seria risível.

Todavia, conseguir estar só é mesmo a senda que prova amadurecimento emocional? Ou chegamos a um ponto em que o mais desconcertante indício de saúde psíquica é conseguir admitir o quão fundamental é o outro? O outro simplesmente. Sem preocupação com minúsculas ou maiúsculas?

A espécie humana é a única que não sobrevive biologicamente e emocionalmente na solidão.  Levamos uma pá de tempo para construir o conceito de que a paz da psique é o resolver-se por si. Mas nesse agora, nesse poço de egolatrias que faz inclusive pandemias mortais não serem satisfatoriamente contidas, não seria agora a hora de tentar entender a importância psicossocial de construir o NÓS?

Os universos das pessoas com deficiência reforçam a necessidade de ampliar esse debate. A solidão sensorial destrói sanidades. O estar só com seu universo não sonoro é, por exemplo, uma das maiores perturbações da pessoa surda. Ouvintes conseguem recusar o exílio em seus próprios pensamentos usando uma música para se distrair de si, por exemplo. O surdo não. Há muito mais sossego, portanto, quando a pessoa surda consegue não estar só. A solidão cognitiva é um dos maiores dramas do autista. Sofrem psiquicamente aqueles que o circundam. Sofre ele próprio. A solidão física da pessoa tetraplégica é igualmente outro drama. O outro é o que traz a lenitiva possibilidade de que seu Eu se desloque, respire... Deixar de ser deixado só e ser incluído pelo outro é o que solidifica e pacifica a psique da pessoa com deficiência.

Por fim...  

Freud, Lacan, Klein, Winnicott, caríssimos mestres... não foi sozinho que o autor desse texto chegou a tais reflexões. Foi com vossas senhorias. Então, persiste mesmo a solidão sendo conceito de maior saúde emocional? O relevante é estar só... ou estar bem na companhia de si mesmo?

*Carlos Correia Santos é Psicanalista,  Psicopedagogo (ABPP/PA 2020006) e Musicoterapeuta (CPMT-PA 036/19) com capacitação em Arteterapia, Ludoterapia, Terapia Cognitivo Comportamental, Terapia Neurocientífica, Linguagem Corporal e TDAH (Avaliação e Intervenção), especialista em Educação Inclusiva, especialista em Autismo, especialista em Saúde Mental e especialista em Educação Musical e Ensino de Artes. Pós-graduando em Transtornos Globais do Desenvolvimento e em Neuropsicologia.

 

 

 

 

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