REFLEXÕES SOBRE PSICOPOESIS I - A ARTE DE PERDER

Por Carlos Correia Santos - Educador e Terapeuta

Explico, desde pronto, que defino como Psicopoesis a propriedade que textos poéticos podem ter de atuar como condutores psicanalíticos. Seja ajudando a acessar zonas do inconsciente. Seja desconstruindo mecanismos de defesa do ego. Seja colaborando como instrumental para a livre associação. Seja se entrecruzando com experiências de sonhos. Enfim... muitas são as possibilidades de condução psicanalítica que textos literários podem apresentar. Nessas reflexões que passo a dividir, vou usar a mim mesmo como corpus analisis. Ou seja, vou partir de fruições minhas para abordar os cernes do que quero propor e discutir. E começo essa propositura com o efeito de certos versos de Elizabeth Bishop sobre a minha psique.

O primeiro contato que tive com o poema A ARTE DE PERDER, de Bishop, foi quando ainda eu nem sonhava - e isso não é trocadilho - em estudar Psicanálise. Sequer cogitava a possibilidade de enveredar por nenhuma das feições de atuação terapêutica em que enveredei (Psicopedagogia, Musicoterapia, Arteterapia, Hipnoterapia). Foi já no finalzinho da adolescência. E aquilo foi demais impactante. Não sabia, ainda não podia entender, mas aquela escrita poética estava acessando questões do meu inconsciente:

 



A arte de perder não é nenhum mistério;

Tantas coisas contêm em si o acidente

De perdê-las, que perder não é nada sério.

 

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,

A chave perdida, a hora gasta bestamente.

A arte de perder não é nenhum mistério.

 

Depois perca mais rápido, com mais critério:

Lugares, nomes, a escala subseqüente

Da viagem não feita. Nada disso é sério.

 

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero

Lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.

 

Perdi duas cidades lindas. E um império

Que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

 

- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo

que eu amo) não muda nada. Pois é evidente

que a arte de perder não chega a ser mistério

por muito que pareça (Escreve!) muito sério.


Sempre tive pavor de perdas. Quando menino, a mais aterrorizante ameaça que podia me perturbar era o medo de perder minha mãe. Ainda hoje, o simples fato de escrever isso é aflitivo. Eu fugia de olhar pra essa possibilidade ao ponto - creiam - de mudar de calçada caso uma funerária fosse surgindo no horizonte do meu caminho. Achava que era agouro, como diziam os mais velhos.

A questão é que a psicopoesis da criação de Bishop já me recomendava: "elabore as perdas, rapazinho... isso está desajustado nas tuas camadas intimas". E isso me faz teorizar que o principio da psicopoesis se processa basicamente de duas formas. A primeira é essa que me tangenciou desde cedo com esse poema: a recomendação subjacente para que se acesse questões a serem confrontadas, sob a forma de afeição lírica. Eu gostava daquele poema, sem logo compreender o porque. O pré-consciente fazia com que eu me afeiçoasse por aqueles versos para que pudesse ouvir sussurros mais calcados. A outra forma é a contrária, mas igualmente importante. O incomodo. Quando um poema te incomoda é porque também o pré-consciente está querendo te trazer falas. Só que o modo do consciente reagir é aversivo. Não. Isso não é bom. Não é pra ser aferido. Assim, a sugestão é que se pare e se tente inquirir os efeitos psicopéticos de uma escrita literária. Se gosto muito, do nada... o que isso quer comunicar? Se detesto tanto, do nada... o que isso denuncia?

Sim, Bishop... Perder é uma Arte. E entendamos Arte como esse caminho que nos conecta com o Belo. Perder é Belo? Sim. É. Na medida em que representa entendimento sobre a necessidade de se desprender. Desprender de medos, posses, convicções é belo. Perder o temor de aceitar que tudo é efêmero... É belo. É uma Arte perder o pesar de admitir que caminhamos na existência sobre uma infinidade de perdas... O enfrentamento desse paradigma talvez fizesse com que tantas mortes fossem evitadas em relacionamentos abusivos nos quais não se quer perder o outro por nada. Tanto mais ganharia a honestidade social se, no lugar de ganhar numa falcatrua, a escolha fosse perder. Conquistar pode ser abrir mão. Perder status para ganhar qualidade de vida. Perder o rigor de uma opinião num bate boca para ganhar paz de espírito. Perder é decididamente uma Arte. E, a partir disso, depreende-se que conseguir acessar as mensagens contidas no profundo em nós... é terapêutico.

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Carlos Correia Santos é Psicopedagogo e Musicoterapeuta, especialista em Educação Inclusiva, especialista em Autismo, especialista em Saúde Mental, especialista em Educação Musical e Ensino de Artes, Psicanalista em formação, pós-graduando em TGD - Transtornos Globais do Desenvolvimento.

 


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