A IMORALIDADE SOCIAL CONTIDA NO PENSAMENTO "NÃO FOI COMIGO, NÃO VOU ME METER"

Por Carlos Correia Santos - Educador e Terapeuta

brutal estupro e assassinato de Catherine Susan Genovese (imortalizada pela crônica policial e pelos compêndios psicológicos como Kitty Genovese), aos 28 anos, em março de 1964, em Nova York (EUA) se tornou, para os estudos sobre comportamentalidade humana,  a senha definidora de um dos mais assustadores modus operandi da crueldade social: a chamada Síndrome do Espectador (Bystander Effect). O caso choca não apenas pela terrível sanha criminosa que o desenha, mas por um detalhe estarrecedor: a inércia observadora.

Naquela fatídica noite, vinda do trabalho, Kitty estacionou seu carro na estação de Long Island Road e seguiu, a pé, para seu apartamento, em Kew Gardens, no Queens. Já perto de chegar ao destino do seu descanso, seu lar, foi surpreendida por Winston Moseley. Um assaltante. O que já se anunciava dramático, tornou-se trágico. O criminoso não se contentou em levar o que pudesse pertencer a Kitty. Quis mais. E ali, em plena rua, rasgou-lhe o vestido e a violentou impiedosamente.



Tudo isso aconteceu diante da residência da vítima. Bem em frente ao cenário dessa desgraça, um prédio de dez andares batizado de Mowbray. Os gritos desesperados de Genovese tiveram a eficácia de fazer com que 38 moradores do edifício viessem à janela para tudo assistir. A dinâmica do horror durou 35 minutos. Estupro. Facadas. Tudo diante dos olhos de 38 cidadãos de bem... E ninguém... Soletrem essa palavra: N-I-N-G-U-É-M... Ninguém fez nada. Nenhum brado para tentar afugentar o meliante. Nenhum objeto jogado para tentar assustá-lo. Nenhum movimento em direção àquela mulher lançada na arena da mais bárbara brutalização. Nada. Concluída sua sanha bestial, o bandido simplesmente pegou o seu carro e partiu. Uma mulher dilacerada. Trinta e oito espectadores silenciosos. O caso ganhou repercussão imensa. Não apenas por todo o ocorrido funesto, mas bastante especialmente pelas indagações: por que vocês não fizeram algo?... Em juízo, as respostas foram vagas e perturbadoras: "pensei que outro vizinho ia fazer alguma coisa"... "não sei explicar o que deu em mim"...  "eu só conseguia ficar vendo".

Estamos 56  anos distantes daquela sombria noite, mas continuamos nas janelas... apenas assistindo. Somos como aqueles espectadores soturnos quando numa pandemia vemos várias pessoas não cumprindo regras sanitárias que podem levar à morte e nada fazemos... Pensa-se que outra pessoa fará alguma coisa... Não se sabe explicar o que dá no íntimo... Só se fica vendo... Somos como aqueles espectadores trevosos quando sabemos que a vizinha do sexto andar apanha todas as noites e entreouvimos seus gritos e gemidos sem que nossos dedos cheguem perto das teclas que chamam a polícia... Pensa-se que outra pessoa fará alguma coisa... Não se sabe explicar o que dá no íntimo... Só se fica vendo... Somos espectadores macabros quando num grupo de Whatsapp alguém ataca quem quer ajudar e nos mantemos num silêncio covarde e nem um emoji de defesa ou solidariedade ofertamos ao atacado... Pensa-se que outra pessoa fará alguma coisa... Não se sabe explicar o que dá no íntimo... Só se fica vendo... A imoralidade social do pensamento "não foi comigo, não vou me meter" afia gumes, dispara gatilhos. Na existência, somos assassinados fisicamente, somos assassinados espiritualmente, somos assassinados eticamente, assassinam nossos melhores sentimentos e intentos. Pessoas matam pessoas não apenas quando matam pessoas... Mas igualmente quando fazem da vida parapeito para apenas apreciar a morte alheia.  

De nada adianta agora, mas...

...mil perdões, Kitty... Mil perdões!

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Carlos Correia Santos é Psicopedagogo e Musicoterapeuta, especialista em Educação Inclusiva, especialista em Autismo, especialista em Saúde Mental, especialista em Educação Musical e Ensino de Artes, Psicanalista em formação, pós-graduando em TGD - Transtornos Globais do Desenvolvimento. 


Comentários

  1. Parabéns Carlos, você como sempre na sua escrita impecável e que dilacera a consciência.

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  2. Parabéns Carlos, é fantástica sua visão dos fatos...e, também peço perdão a kitty!

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  3. Belo trabalho!
    Foram e ainda estão sendo dias difíceis. Formar grupo de convivência e socialização em meio a uma tempestade é para lá de desafiador.

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  4. É algo realmente aterrorizante. Ao ler o que Kitty passou, senti uma descarga de adrenalina que com certeza me faria tomar alguma medida para ajudar essa moça, como que 38 pessoas assistiram tudo isso sem sentir nada que os levassem a interromper tamanha violência? A desumanidade me assusta.

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